Geopolítica do coronavírus: entrevista com Robert Steuckers
No coração de uma crise mundial inédita por sua amplitude, Strategika oferece a opinião de analistas e de pensadores reconhecidos em suas áreas de atuação. Colocamos a cada um uma série de questões que dizem respeito aos diferentes aspectos desta verdadeira crise da civilização, bem como suas repercussões políticas, geopolíticas e sociais.
Hoje conversamos com Robert Steuckers.
Robert Steuckers, nascido em 1956, em Uccle, Bélgica, formou-se no Instituto Maria Haps, ligado à Universidade de Louvain, onde obteve o mestrado em inglês e alemão. Ele dirigiu um escritório de tradução em Bruxelas durante vinte anos antes de se dedicar a várias tarefas de ensino de idiomas. Ele criara o think tank “Synergies européennes” em 1994, que organizou cursos de verão na França, Itália e Alemanha. Ele administra, com outros, o site Euro-Synergies, que apresenta aproximadamente 17.000 artigos. Steuckers é autor de vários livros e ensaios, especialmente a trilogia Europe, verdadeira summa sobre a identidade e história dos povos europeus, assim como La révolution conservatrice allemande e Sur et autour de Carl Schmitt.
Strategika
– Lemos muitos elementos contraditórios segundo diferentes fontes de
informação disponíveis ou de acordo com opiniões dos profissionais de
saúde. Para você, qual é, de fato, a realidade desta pandemia?
Não
podemos excluir uma origem natural da pandemia (embora eu permaneça
cético perante a fábula do pangolim e do morcego), mas devemos aceitar
discutir uma outra hipótese: isso é um ato de guerra bacteriológica
dirigida contra a China, o Irã e a Europa, os três principais focos da
doença. O vírus mutante, porque o vírus é, ao que parece, mutante,
poderia também ter escapado de um laboratório chinês, ou outro, mas
então por que ele atinge os rivais da hegemonia, quase excluindo outras
regiões do globo? Se a hipótese de uma guerra bacteriológica se revelar
exata, poderíamos estabelecer o seguinte cenário: o centro nevrálgico da
China foi atingido, sua indústria impulsionada pelas deslocalizações
neoliberais no resto do mundo, sobretudo na Europa, fica reduzida, o que
tem um efeito sobre sua moeda, capaz, a médio prazo, de suplantar o
dólar. Ademais, essa recessão ou essa sabotagem trava a realização das
famosas “rotas da seda”. O Irã, inimigo número um de certos círculos
neoconservadores, é, por sua vez, atingido, país que então poderia
facilmente se tornar o principal fornecedor de hidrocarbonetos para a
China e um parceiro comercial mais importante da Europa, como no fim do
regime do último Xá, com os acordos EURATOM, em particular. Essa é a
tese de Houchang Nahavandi, ex-ministro do Xá e autor de livros muito
importantes sobre a história recente e antiga do Irã, cuja leitura
recomendo enfaticamente.
Na
Europa, as calamidades se abatem sobre os elos mais fracos e sobre o
principal motor da economia europeia, a Alemanha. A Grécia deve
enfrentar a crise dos refugiados na sua fronteira trácia, enquanto sua
saúde econômica e financeira está vacilante há uma década, na sequência
da crise de 2008. Ela ainda escapa amplamente do coronavírus mas… Wait and see…
A Itália, recorde-se, assinara acordos especiais, fazendo dela o
trampolim da China na EU. A Espanha igualmente recebeu a crise da
pandemia em cheio, porque ela também é uma economia fragilizada que pode
levar à ruína o projeto europeu, favorecido pelos Estados Unidos nas
décadas de 1940 e 1950, em seguida considerado concorrencial e colocado,
nomeadamente pela doutrina Clinton, como “alienígena”, ou seja, como
inimigo potencial, se não inimigo declarado. A França também foi
afetada, ainda que, oficialmente, seja considerada aliada desde Macron,
presidente formado intelectualmente por uma escola americana. Ela está
sendo progressivamente esvaziada de seus expoentes industriais (Alsthom,
Latécoère…) e pesadamente infestada pelo coronavírus, tudo simplesmente
porque o hiperliberalismo a debilita desde a presidência de Sarközy,
cortada nos setores essências, não mercadológicos, incluindo a área de
saúde. Sem uma área de saúde forte, bem estruturada, prevenindo todas as
formas de pandemia, compreendendo aquelas que poderiam ser
desencadeadas por um ataque bacteriológico, um país é o alvo ideal para
esse tipo de operação.
A
desgaullização da França, a partir de Sarközy, constitui o
desmantelamento de um Estado que possuía reflexos clausewitzianos,
almejado pelo militar De Gaulle, pelo menos em seus escritos teóricos,
influência que exercia Raymond Aron, grande especialista em estratégia
alemã do século XIX, em sua práxis original dos anos sessenta, que
poderia ser descrita como um modelo de “terceira via” entre os dois
blocos da guerra fria. Era uma resposta aos imperativos da Terceira
República, fustigadas por Simone Weil em Londres antes da sua morte em
1943, e à má gestão política da Quarta República.
Esses
tipos de regime administram o curto prazo, o mesquinho e não preveem
nada, o que implica a incapacidade de decidir em momentos oportunos e de
fazer face a catástrofes imprevistas, como uma pandemia. “O suicídio
francês”, descrito por Eric Zemmour, é justamente esse desmantelamento
progressivo do Estado clausewitziano – com todos seus dispositivos
postos em ordem, que sempre previam o pior –, o que a Quinta República
queria ser quando da sua proclamação e sobretudo nos anos 1963-69.
A
moral disso é que todo Estado ou grupo de Estados deve,
imperativamente, se quiser sobreviver às tramas de seus inimigos (pois
há sempre um inimigo, dizia Julien Freund), conservar seus trunfos
industriais e rejeitar deslocalizações e fusões com corporações
estrangeiras, manter as infraestruturas médicas sólidas e um sistema
educacional/universitário eficiente.
Na
Alemanha, os dispositivos previstos para uma pandemia foram
conservados, o que explica uma melhor gestão da crise do coronavírus. No
entanto, o futuro da Alemanha não é róseo: os fluxos de refugiados que
se instalaram em seu território estão arruinando o sistema de seguridade
social exemplar que foi implantado no pós-guerra e engendram desordem
em todo o lado nas ruas das cidades; o principal parceiro da indústria
alemã hoje é a China, mas essa dependência é frágil, os chineses acabam
sempre por produzir as coisas de que precisam, especialmente carros. A
indústria alemã apostou demais na exportação de seus excelentes
automóveis, sem imaginar que esse fluxo poderia um dia secar.
Além
disso, a dupla de gás germano-russa está na mira da hegemonia: as
empresas europeias que contribuíram para a conclusão do gasoduto Nord
Stream 2 estão diretamente ameaçadas de processo pela “justiça”
americana ou confisco de seus ativos em bancos do outro lado do
Atlântico. O caso Frédéric Pierucci, quadro da Alsthom, ilustra bem qual
é esse risco, especialmente no livro de testemunho que esse executivo
redigiu depois de sua prisão nos Estados Unidos, Le piège américain.
Enfim,
a Alemanha está diante de uma crise sem precedente em sua história
pós-1945. Os partidos que foram a base de apoio da República Federal a
partir do milagre econômico e desde a reunificação que se seguiram após o
desaparecimento do Muro de Berlim estão em queda livre. O SPD
socialista não é mais que sua própria sombra. A CDU, verdadeiro pilar do
país, passa por rebaixamentos problemáticos e perde nos seus círculos
em todos os Länder da antiga RDA. Esse rebaixamento ou declínio
não é exceção na Europa: os democratas-cristãos italianos desapareceram
da cena há muito tempo já; O PPE espanhol está em liquefação, o que
permite hoje a uma falsa esquerda, apesar das etiquetas, de mal governar
o país em crise e face à pandemia; os dois partidos democratas-cristãos
belgas estão igualmente em via de desaparecer. Esses enfraquecimentos
democratas-cristãos e socialistas desafiam: uma outra normalidade
política está em via de constituição, mas ainda não se sabe quais
contornos ela assumirá.
Apenas
Orban mantém sua forma húngara de democracia cristã em funcionamento,
obtendo simultaneamente certo consenso em seu país, mas fustigado e
mesmo ostracizado pelas instâncias eurocráticas que fazem pressão para
que ele seja excluído de tudo.
O
declínio alemão é inelutável, ao contrário do que se crê comumente hoje
na França, onde certos círculos agitam novamente o espectro de um
pangermanismo agressivo. No outro lado do Reno, a literatura
contestadora do sistema está florescendo e não é mais reduzida às
margens esquerda ou direita, mas doravante proveniente das mais altas
esferas econômicas ou intelectuais. Será necessário regressar a isso,
pois os argumentos apresentados por esses dissidentes, contestadores
casam muito bem com as críticas à eurocracia em voga na França.
Se
a pandemia se abateu há pouco sobre os Estados Unidos, cujo sistema
hospitalar deixa muito a desejar, poderemos argumentar que a hipótese,
que não é mais que uma hipótese, que esbocei aqui, está errada, já que a
hegemonia, acusada de ter desencadeado uma guerra bacteriológica, será
eximida dessa acusação, visto que ela mesma foi atingida pela pandemia.
Mas toda operação bacteriológica tem isto em peculiar, a primeira vítima
pode facilmente reenviar a bola e espalhar o agente perturbador na casa
de quem o enviou.
Strategika – Esta pandemia precede um colapso econômico e sistêmico?
Penso
que sim. Primeiro, o confinamento desacelera a indústria em um sistema
que não tolera qualquer pausa. Para Carl Schmitt, o mundo globalizado
pela vontade de Roosevelt entre as década de 1930 e 1940, estabeleceu o
elemento “água”, uma vez que a hegemonia construída pelo presidente
americano é uma talassocracia ideologicamente liberal: navegamos, por
conseguinte, neste imenso oceano simbólico e nos fluxos dos mercados e
das comunicações controlados desde a partida pela potência naval
americana: quem fica parado em tal contexto, simplesmente flui, escreveu
Carl Schmitt em seu Glossarium. Destarte, sempre pensei que a
crise de 2008, mais profunda do acreditávamos até aqui, não foi, de
fato, superada: colmatamos as fendas continuamente com toda sorte de
artifícios, travando seus efeitos durante doze anos. Essas manobras de
remendo chegam ao fim. E vamos colocar na conta do vírus a implosão
definitiva do sistema para que os povos não procurem designar os
culpados.
Strategika
– Mais de 3 bilhões de pessoa no mundo foram instadas a se confinar.
Pela primeira vez na história, a humanidade parece conseguir se
coordenar de maneira unitária face a um inimigo global comum. O que você
pensa disso?
Essa
situação é assustadora porque se houver pandemia, indubitavelmente ela
não é muito mais explosiva, ao menos até aqui, que as gripes sazonais
habituais. O vírus parece certamente mais virulento que aquelas gripes,
mais resiliente uma vez expectorado fora de corpos humanos e mais
agressivo sobre o sistema respiratório dos pacientes mais fracos, cujo
sistema imunitário está fragilizado por outras patologias. Estamos
diante de uma situação comparável à de 1968 e 1969-70, em que um vírus
gripal matou, em determinada altura, nada menos que até 4000 pessoas por
semana na França! Em 2018, de 26 de fevereiro a 4 de março, 2.900
pessoas morreram da gripe sazonal na Bélgica, em apenas uma semana!
As
hipóteses que defendem que os círculos dominantes orquestram um pânico
para instalar um sistema ditatorial, panóptico, vetor de uma vigilância
universal e onipresente, devem ser levadas a sério.
O
comportamento seguidista dos cidadãos é surpreendente em tal contexto,
enquanto que é patente que as esferas dirigentes têm interesse em
promover tal sistema: a Itália de Salvini ou mesmo a Itália pós-Salvini é
um país imprevisível que se deve observar; a França dos Coletes
Amarelos que rejeitam o hiperliberalismo que lhes querem impor, merece,
aos seus olhos, uma punição severa, e a Alemanha que vaia Merkel a cada
aparição pública deve ser igualmente castigada, tanto mais porque se
aquece com o gás russo e faz girar sua indústria com os hidrocarbonetos
putinianos.
Nós
chegamos à era do “Vigiar e punir” planetário, de que a Europa será a
principal vítima, pois os chineses e iranianos estão mais próximos de
aceitar os custos humanos e possuem capacidades de resiliência
superiores a nós, encontradas na religião xiita, confucionista ou até
mesmo na ideologia comunista revisada e corrigida, tanto que se
assemelha mais aos projetos de Frédéric List no século XIX e com aqueles
que inspiraram os ideólogos do Kuomintang, militante de um renascimento
chinês depois do “século da humilhação”, quando o Império Celeste caíra
em profunda decadência.
Strategika
– Essa pandemia vai forçar a humanidade a adotar um governo mundial
como preconizava Jacques Attali durante a pandemia de influenza A em
2009?
Attali
formula pelo menos o projeto e há traços dessa visão messiânica em bom
número de seus escritos anteriores. Além disso, em uma obra que trata do
mundo visto pela CIA, há uma década, Alexandre Adler aventa uma
pandemia como aceleração de mundialização ampliada, se não definitiva.
Não obstante, não vejo a China de Xi Jinping e a Rússia de Putin se
entregando a tal projeto. Sem falar do Irã…
Strategika
– Ainda em 2009, Jacques Attali explicou que a “História nos ensina que
a humanidade só evolui significativamente quando tem realmente medo.” O
que você pensa dessa ideia?
Essa
ideia é uma generalização. Quase um truísmo. Mas se Attali, cantor do
projeto globalizante em via de realização, a evocava em 2009, é uma
engenharia social e midiática que bem orquestrada poderia, se for esse o
caso, criar medo para concretizar esse projeto com o qual ele sonha há
muito tempo. Essa criação de um pânico global é o que estamos a
testemunhar hoje.
Mas
Attali é daqui em diante um velho guru, da idade daqueles que ele
deseja que morram para que os governos hiperliberais não paguem
aposentadorias. No entanto, o novo guru mundial se chama Yuval Noah
Harari, célebre por dois best-sellers que encontramos em todos os
idiomas, em todas as livrarias do mundo, mormente nas grandes estações e
aeroportos, onde há aqueles que nomadizam em grande ou pequena escala.
Em 20 de março de 2020, esse Harari publicou um longo artigo no
Financial Times (https://amp.ft.com/), no qual apresentou o programa de
mundialização em curso de maneira prazerosa e atraente, como de praxe:
não podemos censurar Atalli nem a Harari de terem um estilo maçante,
incapaz de prender a atenção de seus leitores. Harari considera que, com
o coronavírus, há uma urgência (emergência) e toda urgência é “um
processo histórico acelerado”. Em seguida, cito: “As decisões em tempos
normais, que podem exigir anos de deliberação, são tomadas em algumas
horas (…). Tecnologias ainda não inteiramente desenvolvidas e mesmo
perigosas são implementadas, porque os riscos são muito mais elevados se
não se faz nada (…). Países inteiros servem de cobaias em grande escala
para experimentações sociais.” Harari evoca, ato contínuo, um mundo em
que haverá apenas teletrabalho e principalmente ensino a distância: o
confinamento que vivemos parece então uma etapa preparatória para esse
futuro de total reclusão, concebido nas altas esferas dominantes. Harari
concebe também o monitoramento geral da humanidade, acompanhado de
punições para os teimosos. Ele é até um pouco lírico dizendo que hoje os
governos são mais fortes que a KGB soviética pois as autoridades
dispõem agora de “sensores onipresentes e algoritmos poderosos”.
O
coronavírus, acrescenta ele como se quisesse trazer água para o nosso
moinho, já permite abrir tal arsenal, inédito na história da humanidade,
particularmente na China, onde o Estado se manifesta continuamente por
meio dos smartphones de seus cidadãos, utiliza o reconhecimento facial
em grande escala e pode determinar qual é o estado sanitário de cada
chinês por meio de aparelhos destinados a verificar sua febre, que
qualquer policial pode levar e utilizar em vias públicas.
A
etapa seguinte também nos é revelada pelo artigo de Harari: sentimentos
como cólera ou alegria são fenômenos biológicos na mesma medida que a
febre ou a tosse: podemos, pois, detectá-los e manipulá-los no início,
com os mesmos instrumentos que servem para verificar nas ruas da China
os febris potencialmente “coronavirados”.
Por
fim, Harari revela o objetivo final, quase messianicamente, em suma, a
Parusia finalmente em advento: a “cooperação global”, a única tábua de
salvação contra o vírus que deve nos induzir a optar por um “espírito
globalista”, tornando desnecessárias as reações locais ou nacionais.
Quer
dizer, Harari opta por uma humanidade radicalmente diferente daquela
que Claude Lévi-Strauss tinha preconizado em seus tempos: ele queria
tantos tipos humanos quanto ainda existiam no planeta quando se dedicava
a suas pesquisas em etnologia, queria promover um “espírito
etnopluralista” para que o homem tivesse à sua disposição muitos modelos
possíveis para imitar ou assimilar em caso de bloqueio ou de colapso do
modelo ao qual pertencia, no qual diversas gerações de seus ancestrais
tinham vivido. A humanidade devia ser plural para esse etnopluralismo
lévi-straussiano. Para Attali e Harari, isso não parece ser o caso. Eu
tenho, não escondo, a nostalgia do projeto de Lévi-Strauss.
Strategika – Como você vê a evolução da pandemia e suas consequências políticas e sociais nas próximas semanas?
Eu
penso que suscitará pânico ao menos até meados de maio, até o momento
em que a desaceleração das indústrias europeias terá consequências
irreversíveis e que a crise estará aqui, bem palpável, com um número
incalculável de falências de pequenas e médias empresas. A crise social
na França se acentuará e o movimento dos Coletes Amarelos retomará com
vigor, com mais força. Os outros países europeus seguirão, compreendendo
a Alemanha. Por conseguinte, o confinamento findará por provocar os
mais pacientes entre os autóctones e provocar tumultos nos bairros
perigosos porque o Ramadã começa no final de abril e se estende ao final
do mês de maio. Há algo mais grave: o mundialismo globalitário visa a
erradicação da cultura europeia, cujo símbolo mais claro e espetacular
foi o incêndio da Notre-Dame de Paris. O confinamento resultou numa
primeira sabotagem da liturgia implícita da nossa civilização: as férias
de Páscoa e as festividades pascais, inclusive a semana santa
espanhola, serão canceladas pela primeira vez em séculos, do mesmo modo
que o ciclo de primavera de maio, com as festas religiosas acompanhadas
das comunhões, pretextos para festas de famílias que integram a
sociedade.
Na
sequência desse sacrilégio, pois isso deve ser classificado desse
jeito, o ciclo de férias estivais será muito provavelmente afetado, uma
vez que é uma tradição secular, também pontuada de celebrações. O povo
de nosso subcontinente será profundamente perturbado, desestabilizado
psicologicamente, com efeitos somáticos. Esse é o risco mais assustador
num futuro próximo, visto que, desencadeado o sacrilégio de quebrar
nossa liturgia milenar, haverá o risco de reincidência. Mas mesmo a
ruptura do ciclo ritual litúrgico, herdado de Roma, durante um ano
somente, é vaticínio de catástrofes: nunca ousamos isso.
Strategika – Na sua opinião, há uma saída política à situação que você acabou de descrever e que forma ela poderia assumir?
Uma
saída política, verdadeiramente política no sentido, no entendimento de
Carl Schmitt e Julien Freund, apenas é possível por uma demonstração de
força, uma provação cruelmente conflituosa, por uma convulsão
semelhante à revolução russa de 1917. Ora, não estamos mais nos anos
1920 ou 1930, quando milhões de soldados regressavam do front e não
tinham medo de ser atacados ou de morrer baleados por governistas ou
adversários políticos. Ainda por cima, não se quebra mais um regime hoje
com simples fuzis, munidos de baionetas. Os Estados possuem armas mais
sofisticadas, que não podemos comprar na loja da esquina, mesmo nos EUA.
Eles dispõem de “sensores onipresentes e algoritmos poderosos”, para
citar Harari. Em nossos dias, há drones, câmeras, complexos ocultos,
para que não seja suficiente tomar o posto central dos Correios, como em
Dublin em 1916, ou a Rádio de Moscou em 1993, face aos blindados de
Yeltsin.
Nossa humanidade está adocicada demais por décadas de liberalismo (ou de festivismo) para ousar tal aventura.
A
única forma que uma reação poderia assumir seria um deslocamento no
sentido de um iliberalismo à Orban ou à Putin, sem repetir a estúpida
dicotomia esquerda/direita, pois o inimigo de todos é único: se trata do
hiperliberalismo imposto em nossas sociedades pela parelha
Thatcher-Reagan a partir de 1979. Não obstante, à esquerda temos pesados
reflexos hostis à política e, à direita, temos sempre a tendência a
incorrer em uma forma ou outra de liberalismo. Essas são as armadilhas a
evitar, apelando a uma imaginação metapolítica que fundiria corpos
opostos em uma nova síntese, em que os princípios da justiça social e suum cuique sejam respeitados.
Strategika – Como você relaciona a crise atual com sua expertise e seu campo de pesquisa?
Eu não sou um expert,
mas um observador engajado. A meu ver, a crise atual é o ápice da crise
financeira de 2008, mas posso me trair, uma demonstração de força bem
orientada, perpetrada por um ato de guerra bacteriológica que visa
destruir o poder econômico europeu (a única forma de poder que resta em
nosso subcontinente), o adversário chinês, derrocar a “nova rota da
seda”, com o apoio contínuo de uma orquestração midiática planetária.
Estamos
em meio a guerras híbridas ou guerras de quarta geração, quer dizer,
guerras em que não alinhamos mais exércitos, tanques, infantarias, mas
nas quais aplicamos habilmente estratégias indiretas. A Europa, já
constataram alguns observadores nos anos 1990 e 2000, era a menos
preparada para manejar as ferramentas midiáticas e culturais dessa
guerra de nova dimensão: isso era preocupantemente verdadeiro e hoje
estamos pagando fortemente as consequências. Se seu projeto fosse
clausewitziano ao invés de neoliberal, a Europa não estaria nessa
situação…
Fonte: Le blog de Robert Steuckers
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