Robert Steuckers
Entrevista ao Breizh-Info sobre Daria e Alexander Dugin
Robert Steuckers é um tradutor, teórico e escritor belga há mais de 30 anos associado à Nova Direita e conhecedor de Alexander Dugin, o mentor do neo-eurasianismo, descrito pela imprensa internacional como o ideólogo mais influente nos círculos de poder na Rússia e cuja filha Daria morreu em um atentado terrorista recentemente em Moscou. Lionel Baland o entrevistou em nome do Breizh-Info.
Daria Dugina foi vítima de um ataque a bomba, que provavelmente visava seu pai. Qual é o sentido de agências de inteligência estrangeiras tentarem liquidar um pensador? Até que ponto as teorias de Alexander Dugin podem representar um problema para os que estão no poder em Kiev e nos EUA, bem como para as elites globalistas? Quais são as principais características das ideias de Alexander Dugin?
Acho que o atentado tinha como alvo tanto o pai quanto a filha, que supostamente deveriam estar no mesmo carro. No entanto, as investigações até o momento indicam que a própria Daria era o principal alvo, já que a pessoa suspeita de detonar o artefato explosivo alugou um apartamento no mesmo prédio onde ela morava. Não me permitirei especular sobre as razões e interesses de qualquer serviço ucraniano ou ocidental que motivaria um ato tão hediondo, mesmo que o tempo de guerra borre as linhas de conduta normal.
Daria Dugina era muito ativa: ela dirigia uma agência de notícias digital que noticiava ininterruptamente os eventos mundiais. Essas notícias apareciam também no website geopolitika.ru e em sua própria conta no aplicativo Telegram. Como falava bem francês, seu novo trabalho parecia ser entrar em contato com os africanos francófonos, que não suportam mais a arrogância francesa em seus países e querem substituir a tutela de Paris por uma colaboração com a Rússia, como o emblemático exemplo de Mali mostra. O próprio Dugin havia escrito um esboço da história africana para seus compatriotas, que obviamente sabem pouco sobre questões africanas. Traduzi esse pequeno estudo, destinado a evocar as páginas mais brilhantes e interessantes da história africana de uma perspectiva etnológica tradicionalista. A tradução pode ser lida aqui.
Por fim, os correspondentes turcos do “movimento eurasiano” fundado por Dugin acreditam que Daria foi assassinada porque alguns serviços estrangeiros (não especificados) a consideravam a porta-voz mais simbólica da reaproximação russo-turca. A jornalista italiana Francesca Totolo, que trabalha para o jornal Il Primato Nazionale, acredita que o motivo de seu assassinato foi uma investigação que ela conduzia sobre a agência de inteligência britânica Bellingcat. O jornalista polonês radicado na Escócia, Konrad Rekas, em sua homenagem a Daria Dugina, lembrou que o serviço secreto britânico que o entrevistara estava mais interessado na filha do que no pai.
Em relação a Kiev, Dugin certamente não precisa argumentar de maneira muito diferente de outros russos que relatam o conflito atual na mídia da Federação Russa. Dugin, é claro, quer que as áreas conhecidas como “Nova Rússia” retornem à Rússia. Essa “Nova Rússia”, incluindo a Crimeia, é o país conquistado pela czarina Catarina II no século XVIII. Em relação à parte ocidental da Ucrânia, Dugin reconhece explicitamente “que o perfil etnossociológico, histórico e psicológico da Ucrânia ocidental é tal que não se presta à integração na Eurásia”. E em seu artigo ele faz a pergunta: “Não deveríamos deixá-los por conta própria?“. Assim, Dugin reconhece que os ucranianos são diferentes, mas, como russo, é claro, ele não pode aceitar que às áreas de língua russa seja negada a autodeterminação ou mesmo o direito à secessão. O caos na Ucrânia é uma realidade complexa que é difícil de mapear para nós no Ocidente, onde nas últimas sete ou oito décadas uma enxurrada de farsas e fofocas desinteressantes corroeu nossa capacidade de entender fatos históricos e geopolíticos, mesmo entre os intelectuais.
No contexto global, Dugin vê uma luta de proporções quase apocalípticas: uma espécie de luta entre o bem e o mal, onde o bem é o poder imperial e telúrico (seja Rússia, China ou Irã) e o mal é a talassocracia liberal, liberalismo globalista como definido pelos anglo-saxões. Na anglosfera, o liberalismo não é a simples economia de mercado das democracias burguesas baseadas no modelo europeu, mas a permissividade militante que culmina hoje na ideologia “woke”. Então, de um lado, há a decência tradicional, do outro, a histeria destrutiva e demoníaca, principalmente quando orquestrada pela ideia de “sociedade aberta”, tão cara a George Soros. Dugin não é muito diferente dos muitos dissidentes anglo-saxões que criticam o belicismo dos neoconservadores e seus numerosos predecessores. Dugin vê, então, a Rússia como os conservadores europeus do século XIX a viam: um escudo da contra-revolução; no caso de hoje, como um escudo do iliberalismo contra o globalismo mundial propagado por Davos, Soros, Schwab, Bill Gates e Zuckerberg. A filosofia desse globalismo planetário é expressa pelo americano Francis Fukuyama, que Dugin conheceu nos EUA e a quem critica regularmente, veja este artigo. Dugin se opõe à ideia de um “Grande Reset”, que Schwab repetidamente elaborou nos conselhos de Davos, com o projeto de um “Grande Despertar”.
Os fundamentos do pensamento de Dugin vêm do tradicionalismo, de autores como René Guénon e das obras do italiano Julius Evola, este último dando mais foco à casta militar (os Kshatriyas). Ele combina esse alicerce tradicional com o islamismo xiita (de seu mentor azerbaijano Jemal Haidar – 1947-2016). Dugin segue os passos do pensador russo oitocentista Konstantin Leontiev, que defendia a unificação de russos ortodoxos e otomanos muçulmanos contra o liberalismo ocidental. Essa posição, é claro, foi adotada após a Guerra da Crimeia (1853-1856), que desencadeou uma onda de anti-ocidentalismo na Rússia que persiste até hoje. Apesar da influência desses autores – islâmicos como Guénon e Haidar, pagãos não-folcloristas como Evola – Dugin sente que a única tradição em que pode se aprofundar é a ortodoxa russa. Sob o pseudônimo Denis Carpentier, escrevi para a revista Terre & Peuple o seguinte artigo, que resume bem as posições de Dugin no início dos anos 2000.
Soma-se a esse tradicionalismo uma forte influência das teorias geopolíticas continentalistas, sendo a Rússia a potência telurocrática continental por excelência. As universidades soviéticas não falavam de geopolítica pura, como no Ocidente pré-Reagan, mas inseriram essa disciplina em várias outras disciplinas, como “relações internacionais”, geoeconomia etc. Dugin conseguiu que seu livro sobre os fundamentos da geopolítica fosse aceito na Academia Militar Russa. As teses apresentadas nessa obra também podem ser encontradas em vários outros livros do autor. Ele retoma a ideia de Carl Schmitt de Grandes Espaços. Dessa forma, o “Grande Espaço soviético” é, em Dugin, entendido como um “Império Russo”, que é, naturalmente, um Grande Espaço eurasiático. Esse Grande Espaço soviético, “imperial sem imperador”, foi minado pelas ações subversivas do Ocidente, incluindo as Revoluções Laranjas, que trouxeram apenas turbulência e miséria. Dugin contrasta o Leviatã americano com o Behemoth russo, outra comparação bíblica que ele toma emprestada de Schmitt (e Hobbes).
Sobre a Rússia de Putin, que apoia Dugin em todas as suas iniciativas atuais, nosso autor russo está dividido: por um lado, ele reconhece o sucesso de Putin em tirar a Rússia da confusão em que a má gestão liberal introduzida por Yeltsin a mergulhou; por outro lado, ele acredita que por trás da fachada gloriosa e iliberal do Putinismo está uma inadequação doutrinária decorrente de uma relutância em se mostrar verdadeiramente imperial e declarar abertamente guerra a todos os aspectos perniciosos do liberalismo ocidental que permanecem na vida cotidiana dos russos. Jemal Haidar, seu mentor, se opôs abertamente a Putin em 2010, bem antes dos acontecimentos decisivos na Ucrânia, o Maidan em 2014, que, claro, causou primeiro o conflito no Donbass e depois a guerra atual. Para entender as opiniões de Dugin sobre o presidente russo, leia aqui.
Em segundo lugar, a grande obra de Dugin, que está em andamento há muitos anos e ainda não foi concluída, consiste nos muitos volumes de sua “Noomaquia”. Cada civilização, cada cultura, cada grande povo histórico, mesmo cada vertente histórico-cultural tem seu “logos”, escreve Dugin. A noomaquia é, portanto, a luta e/ou a convergência entre os logoi dos povos. Nosso autor pleiteia naturalmente a convergência dos logoi tradicionais, todos eles “formas” ou “Gestalt” no sentido grego antigo da palavra (e é aqui que as obras filosóficas iniciadas, mas infelizmente inacabadas, de Daria Dugina podem fornecer uma base muito sólida para essa ideia de forma ou “Logos”). Com um certo tropismo iraniano, tanto zoroastrista quanto xiita, visto em Dugin, a ideia de uma convergência dos “logoi tradicionais” também pode estar relacionada à ideia do diálogo de civilizações propagada pelo Irã contemporâneo (diferentemente da ideia de Samuel Huntington do “choque de civilizações”, que Dugin não recusa). Dugin pretende, assim, preservar as diferenças resilientes e inalienáveis na psique dos povos, elevando-os à categoria de tradições, todas com um núcleo comum e pré-existente, como Guénon procurou mostrar ao longo de sua obra. Traduzi cinco textos que explicam o que é essa noomaquia e quais são os “logoi” da Alemanha e da China:
NOOMAKHIA: As Guerras do Espírito – Sobre o magnum opus de Alexander Dugin
A Noologia: a disciplina filosófica das estruturas do espírito
A Noomaquia de acordo com Dugin: o logos da Alemanha
Um mundo tripolar: novos horizontes e logoi atemporais
A noologia da antiga tradição chinesa
Assim, a obra de Dugin não se limita aos poucos esquemas que a imprensa parisiense difundiu sobre ele, nem aos esquemas difundidos por alguns falsos eruditos pomposos que se apresentam como “especialistas” em populismo. É uma obra a ser estudada com mais seriedade, pois intenta se adaptar a uma realidade dinâmica, em constante transformação, e que serve principalmente para abrir caminhos em que gerações posteriores se aprofundarão.
Você conhecia Daria Dugina? Você encontrou Alexander Dugin na França, Bélgica e Rússia. Qual foi o contexto desses encontros? Que contribuições Alexander Dugin fez para suas revistas Vouloir e Nouvelles de Synergies européennes?
Não, infelizmente nunca tive a oportunidade de conhecer a Daria Duguina. Só ouvi elogios dos participantes do colóquio de Chisinau na Moldávia organizado por Iure Rosca (com quem tive um diálogo em Lille) e de alguns que foram à Síria ao mesmo tempo que ela para uma viagem de estudo nesse país devastado. Ela fascinava seus companheiros de viagem com a alegria que irradiava e a soberania de seu discurso. Por outro lado, sim, encontrei o pai dela algumas vezes, embora poucas. Vi-o pela primeira vez em Paris numa livraria onde queria vender exemplares das minhas revistas. Nós nos demos bem imediatamente e ele me concedeu uma primeira entrevista em francês.
Encontrei-o depois em Paris num colóquio da GRECE, onde ele palestrou, e numa discussão mais discreta organizada por Christian Bouchet em 1994 num local perto de Porte de la Chapelle, onde fomos os dois oradores convidados. Bouchet ficou preocupado e nos deu uma espingarda caso o evento fosse atacado. Palestramos aos participantes com a arma no colo! Quando russos de seu círculo vieram a Bruxelas, ele lhes deu um pacote de revistas para me entregarem. Foi assim que conheci Larissa Gogoleva, gravemente ferida nos eventos de outubro de 1993 em Moscou, e uma bela família armênia.
Em 1994, Dugin participou de um colóquio na Itália dedicado ao pensamento de Julius Evola. Ele explicou de forma muito didática e concisa as bases do pensamento evoliano que o haviam atraído particularmente, incluindo os conceitos de virâ tântrica e o “caminho da mão esquerda”. O vîra(ou “herói”) tântrico ignora os laços tradicionais da sociedade védica, ele os transcende; este é o caminho heterodoxo da “mão esquerda” que em nosso tempo deve ser considerado, pois um verdadeiro tradicionalista deve transcender as convenções do “revolucionarismo institucionalizado”. Essa perspectiva de “mão esquerda” provavelmente foi o motivo pelo qual ele se juntou às ações provocativas de Eduard Limonov na época do “Partido Nacional-Bolchevique” russo.
É claro que estávamos em sintonia quando nos opomos ao ataque da OTAN à Iugoslávia em 1999, focando nossa luta principalmente na iniciativa “Não à Guerra”, organizada na França por Laurent Ozon e na luta da então Lega Lombarda e seu jornal diário La Padânia. Archimede Bontempi, animador incansável desses círculos e fervoroso anti-atlantista, que coordenou tudo isso em Milão com a bênção do então prefeito da cidade, me convidou, ao amigo de Dugin, o escritor e artista tradicionalista sérvio, Dragos Kalajic, então embaixador da Iugoslávia na Santa Sé, para uma tribuna anti-belicista. Infelizmente, Dragos nos deixou em 2005. Uma grande perda em nossas fileiras. Tanto mais que no mesmo ano morreu muito cedo Carlo Terracciano, autor de excelentes artigos sobre geopolítica, que inspirou profundamente Dugin e o tinha em grande estima. A forma didática de Terracciano de apresentar as grandes teses da geopolítica foi muito útil para o público russo, que inicialmente desconhecia essa disciplina, agora onipresente na mídia, com a diferença de que no Ocidente apenas as formas da geopolítica anglo-saxã são divulgadas.
Quando terroristas chechenos atacaram o Teatro Dubrovna em Moscou no outono de 2002, massacraram espectadores indiscriminadamente e fizeram todos os presentes, incluindo muitas crianças, como reféns. Putin convocou suas tropas especiais e restaurou a situação, apesar do grande número de mortes entre as vítimas. Após essa façanha, publiquei em Au fil de l’épée (novembro de 2002) os textos de Dugin e dos eurasianistas russos para explicar a situação. Lendo esses textos novamente 20 anos depois, percebo que nosso amigo explica perfeitamente a situação e as conexões entre a facção terrorista chechena e os serviços ocidentais e wahabitas, aliados contra a Rússia. O horror da tomada de reféns no Teatro Dubrovna de Moscou e mais tarde o ataque checheno à escola em Beslan, na Ossétia, foram tragédias sem igual que foram minimizadas, borradas e apagadas das telas pela imprensa ocidental: essas escamotagens dizem muito sobre a objetividade nossa imprensa.
Dugin veio a Bruxelas e Antuérpia em 2005 para falar em um colóquio no Castelo Coloma em Sint-Pieters-Leeuw e para se dirigir aos participantes de um colóquio organizado pela revista TeKos, correspondente flamenga do GRECE. Depois disso não nos vimos mais, pois meus novos compromissos profissionais e familiares me ocuparam bastante, e também não nos correspondemos mais, exceto pelo fato de que traduzi sistematicamente textos e entrevistas de Dugin que foram publicadas na imprensa alemã. Só voltamos a entrar em contato a partir da minha aposentadoria, quando tive mais tempo para me dedicar às traduções, que ele usa extensivamente em suas atividades.
As contribuições de Dugin para os pequenos órgãos de imprensa sob meus cuidados, e em particular para o blog “euro-synergies” (criado em 2007), são numerosas e representam, sem dúvida, a biblioteca francesa melhor abastecida nesse assunto, para além dos excelentes volumes, é claro, editados por Christian Bouchet (Ed. Ars Magna) ou Gilbert Dawed (Edições Avatar). Aqui está a entrada “Dugin” no blog Eurosynergies.
Resta mencionar a famosa viagem a Moscou em 1992, onde fui convidado junto a Alain de Benoist e Jean Laloux (ex-diretor da Krisis) para participar de várias atividades durante quatro dias, incluindo uma coletiva de imprensa onde Dugin, Prokhanov, de Benoist e eu comparecemos. Depois disso, tivemos dois jantares juntos, um na casa de Prokhanov, o ex-diretor da revista Lettres Soviétiques, traduzida para vários idiomas e creditada com a publicação de um primeiríssimo número sobre Dostoiévski, que comprei em Bruxelas na década de 1970.
O outro jantar foi na casa do próprio Dugin, onde sua esposa preparou uma excelente refeição para nós. Posteriormente ocorreu nos escritórios do jornal Dyeïnn uma discussão com Guennadi Ziuganov, líder do Partido Comunista Russo, que buscou uma via nacionalista diante da má gestão de Yeltsin. De fato, nessa viagem pude ver o desastre: um dia antes da minha chegada, em 31 de março, o rublo valia um dólar americano. Em 1º de abril, e não estou brincando, a taxa de câmbio subiu para 100 rublos por dólar! Um professor universitário me vendeu seus dicionários de gírias americanas por 20 dólares, um idoso pobre tentou me vender sua coleção de selos, crianças vendiam seus brinquedos nas escadas da “Casa das Crianças”, um adolescente me vendeu o Chapka de seu pai, que era um policial, e foi repreendido como “especulador” por Dugin. Foi horrível e de partir o coração. No dia seguinte, nosso debate com Ziuganov apareceu em duas páginas inteiras do Dyeïnn, lidas pelas pessoas em um trólebus que pegamos. Isso nunca tinha acontecido comigo na minha vida e nunca mais aconteceu!
As ideias do teórico belga Jean Thiriart (1922-1992), que você também conheceu, são uma importante fonte de inspiração para Alexander Dugin. Quais eram suas ideias e como elas influenciaram o pensador russo? E quais são as diferenças entre esses dois pensadores?
Jean Thiriart era um vizinho que eu encontrava diariamente. Após a aliança implícita entre a China e os Estados Unidos, selada pelos Acordos de Kissinger-Zhou en Lai de 1972, a esperança dos ativistas da Jovem Europa era usar a China para forçar a União Soviética a recuar na Europa Oriental e os Estados Unidos a se retirar da Indochina, sem sucesso.
A partir daí, a ideia de uma aliança europeia-soviética contra a China e os Estados Unidos começou a agitar mentes que, mutatis mutandis, podem ser descritas como “nacional-revolucionárias”. Na Itália, Guido Giannettini publicou um livro bem fundamentado sobre o assunto, que devoramos e comentamos em Bruxelas; Jean Parvulesco especula na mesma direção. E Thiriart começou a construir um hipotético império “euro-soviético”, levemente nietzschiano, tendo lido a primeira exegese soviética da obra de Nietzsche, escrita na época por um certo Oduiev.
Thiriart, outrora da juventude pré-guerra de esquerda nas fileiras da “Jeunes Gardes socialistes”, embora alguns anos depois tenha sido tentado a colaborar no espírito de uma Europa unida pela Alemanha, não teve uma atitude típica da direita, do rexismo valão ou dos fascismos das décadas de 1930 e 1940. Além disso, ele não foi influenciado religiosamente e declarou-se abertamente um “materialista”, como a classe anticlerical burguesa na parte francófona da Bélgica. Para ele, a União Soviética não era uma abominação política, como era para os fiéis, mas uma forma simples de fazer política de forma diferente, mas insuficiente, pois apelava para um materialismo que não era mais científico e empregava um sistema econômico falho. Para Thiriart, portanto, era necessário manter intacto o aparato soviético, estendendo-o à Europa (para se livrar da ideologia “hippie e permissiva”, “trivial” e “a-histórica”), mas imbuindo-o de um materialismo físico e biológico, acompanhando as novas descobertas científicas e provendo-lhe um sistema econômico que funcionasse. O sistema deveria ser dirigista, mas deixar a iniciativa para empreendedores criativos (em vez de herdeiros incompetentes, sem criatividade ou acionistas ignorantes que buscam lucro).
A influência de um autor já esquecido, Anton Zischka, sobre Thiriart e toda a sua geração na Bélgica, Holanda e Alemanha precisa de mais esclarecimentos: para Zischka, o teórico das normas trabalhistas, a ciência e a tecnologia fazem parte do gênio do povo e não devem ser restringidas por instâncias ideológicas ou especulativas. Em seu famoso livro “La science brise les monopoles”, Zischka teorizou a ideia do gênio inato do povo, que se expressa particularmente na inventividade de seus cientistas, físicos e engenheiros e que se opõe ao falatório jurídico, especulação na bolsa, infantilismo moralizante e a todos os demais inconvenientes incapacitantes. Os povos da URSS tiveram que contar com os carros-chefe da ciência e tecnologia soviética (aeroespacial) para sair do “atraso tecnológico” especulado pelos estrategistas anglo-saxões russofóbicos (incluindo o grande Arnold Toynbee): essa saída só poderia ser feita em uma aliança com a Europa carolíngia (alemã-francesa) que foi capaz de preencher essa “lacuna tecnológica”.
O que impressionou Dugin na abordagem de Thiriart foi que um homem que foi confundido com um anticomunista não demonstrou antipatia pela URSS e, por extensão, pelo povo russo. Em segundo lugar, enquanto Thiriart falava de euro-sovietismo e não de eurasianismo, o que ele reorganizava, segundo critérios racionalistas, hobbesianos (Leviatã) e centralistas, correspondia à tradicional e mítica Eurásia russo-turaniana que começava a brotar na mente de Dugin também.
O contato entre Thiriart e Dugin foi de curta duração, pois, embora eles se correspondessem por um ano ou mais, foi somente no final do verão de 1992 que Thiriart viajou a Moscou para participar de uma série de debates políticos. Em sua comitiva estavam Michel Schneider, editor da revista “Nationalisme et République”, Marco Battarra, livreiro e editor em Milão, e o brilhante geopolitólogo Carlo Terracciano. Pouco mais de dois meses depois de retornar a Bruxelas, Thiriart morreu em seu chalé de férias nas Ardenas.
Os sistemas de pensamento dos dois homens eram obviamente muito diferentes: Thiriart, como já disse, vinha de círculos seculares na Bélgica que rejeitavam firmemente as tradições religiosas, porque, como Voltaire, eram vistas como “infantilidade”, que desapareceriam junto de seu clero. Dugin, como Catarina II, na verdade, mergulhou na espiritualidade ortodoxa na qual, em contraste com o papismo ocidental (católico), a ruptura entre igreja e estado (império) nunca foi tão clara quanto na Europa Ocidental após a Querela das Investiduras, que no século XI decretou a ruptura irreversível entre o papado e o império apenas alguns anos após a ruptura definitiva entre Roma e Bizâncio (1054).
Após o golpe de Boris Yeltsin em 1993 e a oposição dos parlamentares ao golpe, Alexander Dugin e o escritor Eduard Limonov, que havia apoiado os líderes golpistas violentamente derrotados, fundaram o Partido Nacional Bolchevique. Uma experiência estranha do ponto de vista ideológico, não?
Eu realmente não acompanhei as aventuras do “Partido Nacional Bolchevique”. No entanto, tenho o livro de Limonov chamado “Le grand hospice occidental”, em que retoma uma velha ideia russa e pan-eslava que aparece nas obras de um autor mais ou menos darwiniano do século XIX, Nikolai Danilevski. Para Danilevski, a Europa Ocidental era um aglomerado de povos velhos sem muito vigor, enquanto os russos, que tinham acabado de conquistar a Ásia Central e se aproximavam das fronteiras da Índia britânica, eram um povo jovem, vigoroso e com um grande futuro pela frente, que decidiria o resultado do que os ingleses, incluindo Kipling, chamavam de “Grande Jogo”, ou seja, a dominação da Ásia Central e da Índia.
Limonov, que viveu nos Estados Unidos e na França, muitas vezes em círculos obscuros, chegou às mesmas conclusões, mutatis mutandis, de seu famoso antecessor. A ideia de Danilevski também foi promovida na Alemanha por Arthur Moeller van den Bruck, tradutor de Dostoiévski e líder dos primeiros círculos da “revolução conservadora” (todos russófilos e a favor de uma aliança entre a República de Weimar e a jovem URSS, mas também anti-comunistas, já que os comunistas alemães eram vistos como incompetentes e pouco construtivos). Moeller van den Bruck também falou de “povos jovens” se rebelando contra os “povos velhos” (do Ocidente).
O surgimento do “Partido Nacional-Bolchevique” na Rússia em 1993-94 permitiu que os jornalistas da Pariser Platz construíssem como ponto de partida para seus delírios o espantalho que era a conspiração “vermelha-marrom”. O que utilizaram para justificar a existência dessa conspiração imaginária foram: 1) as assinaturas de círculos heterogêneos na redação da L’Idiot International de Jean-Edern Hallier, que foram arbitrariamente classificadas como de esquerda ou de direita, a depender do humor ou da fantasia (sobre esse assunto por favor leia o artigo recente de Bernard Lindekens); e 2) a viagem a Moscou que fizemos por quatro ou cinco dias de 30 de março a 3 de abril de 1992.
Escrevi uma resposta a todos os trolls do jornalismo parisiense (“L’affaire du national-communisme ou quand les galopins du journalisme parisien ratent l’occasion de se taire – Réponse narquoise aux carnavalesques inquisiteurs de l’été 1993”) num volume da Vouloir cujo índice e alguns artigos estão disponíveis aqui. O caso acabou fracassando, mas ainda deixou repercussões que parecem estar ativas novamente desde o assassinato de Daria Dugina.
No final da década de 1990, Alexander Dugin começou então a desenvolver e disseminar ideias neo-eurasianistas? Em que elas consistem? Qual é o destino da Europa Ocidental e da Alemanha dentro dessas ideias? Por que eles são tão bem sucedidas na Rússia, especialmente nos círculos de poder, e em outros lugares?
As ideias eurasianistas estiveram presentes em Dugin desde o início. Após suas inúmeras tentativas de ganhar uma posição na imprensa de Moscou, e após o interlúdio do “Partido Nacional-Bolchevique” com Limonov, Dugin lançou seu movimento eurasianio para atualizar várias veias do pensamento russo, tanto entre os brancos que emigraram para Praga, Berlim, Bruxelas e Paris, como entre os vermelhos e até mesmo entre os “monarquistas bolcheviques” que admiravam Stalin. A ideia eurasiana consiste essencialmente em manter intacta a massa de terra reunida pelos czares (Pedro, o Grande; Catarina II; Alexandre II) e o Exército Vermelho (1945), ou pelo menos manter as ligações mais fortes possíveis entre os três povos eslavos orientais (uma ideia compartilhada por Soljenítsin e Putin, menos, porém, por Dugin, que acusa o autor do Arquipélago Gulag de ter fornecido uma plataforma para a propaganda ocidental, inclusive a disseminada por André Glucksmann e Bernard-Henri Lévy).
Na prática, serve para manter fortes laços com os ex-Estados da URSS, para mediar conflitos entre eles, para garantir uma boa comunicação entre esses novos países que surgiram há 31 anos e construir boas relações com a Índia, China e Irã. A ideia eurasiana está sendo concretizada hoje por meio de iniciativas como o BRICS ou a Organização de Cooperação de Xangai, embora a China pareça estar desempenhando um papel de liderança. A Belt & Road Initiative (BRI) da China visa moldar a grande massa de terra da Eurásia e, no processo, assumir o controle das principais rotas de comunicação longe das potências marítimas da Anglosfera. Dugin apoia consistentemente essa política e adiciona uma dimensão espiritual que de outra forma estaria ausente nesse novo “Grande Jogo”.
Quanto à Alemanha, apesar de sua atual submissão atlantista, ela faz parte desse “Grande Jogo” desde o início. Os séculos XVIII e XIX foram séculos de simbiose teuto-russa. Desde Pedro, o Grande, e ainda mais desde Catarina II (que também era alemã), centenas de milhares de alemães estiveram envolvidos na construção e consolidação do Império Russo como professores, simples agricultores, engenheiros, industriais, etc. A Primeira Guerra Mundial interrompeu essa simbiose, mas foi retomada já na República de Weimar após a assinatura do Tratado de Rapallo em 1922.
Mesmo sob o nazismo, os laços privilegiados entre ambos “reinos” (que já não usavam essa palavra para seus estados) foram apenas muito superficialmente desmantelados, apenas para ressurgir durante os 22 meses do tratado teuto-soviético, ou Pacto Ribbentrop-Molotov: a URSS forneceu petróleo, metais úteis e trigo ao Terceiro Reich, que de outra forma não teria sido capaz de derrotar a França. O pôquer de Hitler, talvez antecipando um pôquer de Stalin no Ocidente ou um ataque britânico aos soviéticos no Cáucaso, visava obter domínio exclusivo sobre petróleo, trigo e metais sem ter que passar por qualquer “forca caudina”. Esse jogo de pôquer, este “vabanque”, como Ernst Jünger o chamou, terminou em fracasso apocalíptico.
No entanto, a nova República Federativa, criada em 1949 sob os auspícios dos aliados ocidentais, não poderia desconsiderar a URSS: a Política do Leste de Brandt restaurou a situação em um jogo complexo em que os social-democratas estabeleram relações privilegiadas com os países sovietizados do COMECON, enquanto os democratas cristãos corriam para implementar a “política do Extremo Oriente” com a China.
Qual era o objetivo? O restabelecimento da “tríade”, que foi promovido tanto pelos organizadores do Reichswehr no período de Weimar (sobretudo o general Hans von Seeckt) quanto pelos círculos nacional-revolucionários ou nacional-bolcheviques (aos quais figuras como Hielscher, Jünger, Niekisch, von Salomon, Fische etc. pertenciam, com Richard Scheringer lidando com von Seeckt em particular com a China). O que era a “tríade”? A tríade era a aliança anti-ocidental (hostil à França, Grã-Bretanha e EUA), que inclui a Alemanha (com um regime ainda a ser definido e instalado), a URSS (em torno do PCUS) e a China (não os comunistas chineses sob Mao, mas o Kuo Min Tang de Chiang Kai Chek), ao qual se acrescentaria uma Índia futuramente independente liderada por quadros educados principalmente na Alemanha e, em menor grau, na URSS. O Reichswehr e a Luftwaffe treinaram na URSS, especialmente em Kazan, engenheiros alemães construíram as novas cidades na URSS, oficiais do Reichswehr supervisionaram o exército de Chiang Kai Chek.
A razão da agitação que nos preocupa hoje, em 2022, cem anos após a assinatura do Tratado de Rapallo, é que essa tríade voltou a se reunir silenciosamente: a China se tornou o parceiro comercial mais importante da Alemanha que, como durante os 22 meses do Pacto Ribbentrop-Molotov, obteve sua energia da Rússia através dos oleodutos do Mar Báltico (Nord Stream 1 e 2), etc. O Ocidente americano não pode tolerar o restabelecimento tácito dessa tríade, e os serviços criaram as condições para seu torpedeamento, colocando os Verdes no poder em Berlim e pressionando a Rússia na Crimeia, no Donbass, nas margens do Mar de Azov e na foz do Don, regiões sensíveis, cujo controle pela OTAN permitiria um bloqueio total da Rússia. O objetivo da Anglosfera é controlar completamente o Mar Negro e bloquear o Don, que dá acesso ao interior da Rússia. O Don também está ligado ao Volga por um canal que ipso facto liga o Mar Negro ao Mar Cáspio e ao Irã.
Em segundo lugar, o projeto indo-iraniano-russo para criar um “Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul” (INSTC) visa conectar a Índia e o Irã com o Ártico e o Mar Báltico (assim como com Hamburgo, Roterdã e Antuérpia) através de um sistema interligado de transporte marítimo, ferroviário e fluvial, reduzindo o impacto do estrangulamento do Suez. Por essas razões, a ideia eurasiana, como complemento espiritual necessário aos projetos de comunicações terrestres de grande escala, encontra o apoio de muitos políticos russos.
Christian Bouchet afirmou em um artigo no Breizh-Info que Alexander Dugin não é um nacionalista russo. Poderia nos explicar isso em mais detalhes?
Dugin é de fato um eurasianista, tradicionalista e pró-imperium, como nós mesmos éramos no Império Espanhol de Carlos V a Filipe V, ou no Império Austríaco no século XVIII. A Bélgica, juntamente com o Grão-Ducado do Luxemburgo, é o último fragmento não falante de alemão da Lotaríngia Imperial que não foi absorvido e desnaturado pela França. Um escudeiro serve seu rei ou seu imperador, assim como Jean-Baptiste Steuckers, representante do bairro católico de Geldern nos Estados Gerais dos Países Baixos em Bruxelas, e seu filho Jean-François Steuckers, tenente de Brabant do século XVII até sua morte em 1709. Ambos estão enterrados na Igreja de Finisterre em Bruxelas, Rue Neuve. Serviram tanto ao Rei de Espanha como ao Imperador do Sacro Império Romano, juntamente com os seus homólogos de Franche-Comté, Lorena, Alemanha, Espanha, Aragão, Milão, Sicília, etc., e contaram com espanhóis, alemães, irlandeses, ingleses (católicos), croatas e alsacianos que, juntamente com os nossos, defenderam o nosso país contra as hordas de Luís XIV em batalhas memoráveis como o Cerco de Louvain ou o confronto frontal em Rocroi.
Se Dugin não se descreve como um “nacionalista russo”, isso não significa que ele não se sinta “russo” em cada fibra de seu ser, mas um nacionalismo estreito e exclusivo não lhe permitiria apertar a mão de outros povos da Federação Russa, sejam eles caucasianos, ossetas, fino-úgricos, tártaros, etc. A URSS fez tudo possível nas décadas de 1960 e 1970 para salvar as línguas e tradições ameaçadas desses povos, como Mari, Chuvash, Nanai, Komi, Nenets, Udmurts, etc. Essas iniciativas criaram um espírito imperial muito antes de Dugin: sou membro desta ou daquela etnia, mas faço parte do império, que me protege. A República da França não fez nada disso, pelo contrário: apenas as iniciativas privadas permitiram salvar ao máximo as tradições linguísticas ou folclóricas locais. Nunca houve uma iniciativa do governo. Na Grã-Bretanha, a língua córnica teria desaparecido (e seu futuro é incerto) sem uma série de iniciativas privadas, assim como desapareceu a língua manx.
A recusa de Dugin em chamar a si mesmo de “nacionalista” também reflete uma mentalidade política imperial: ele não tem intenção de russificar os Chuvash ou Nenets. Traduzi um dos artigos em seu site que explica exatamente o que ele entende por “povo” (seu termo preferido), “etnia” e “nação”. Leia você mesmo.
Então Bouchet, editor das importantes obras de Dugin, sabe do que está falando. Eu mesmo, como parte do editorial da “Synergies européennes”, tenho colaboradores e correspondentes russos, poloneses, romenos, finlandeses, suecos, britânicos, franceses, suíços, italianos, castelhanos, bascos, navarros, catalãos, flamengos, holandeses, ibero-americanos, alemães, etc. No entanto, isso não me impede de me sentir plenamente membro da região que sempre foi a região dos meus antepassados Steucker: a região em torno de Aachen, na encruzilhada das três línguas, na “esquina dos três países”. Meu pai, um Limburguês, trabalhou em Liège, Bruxelas e Franche-Comté, o que nunca o impediu de se sentir como um filho da terra de Sint-Truiden (Sankt-Trudo), a terra dos pomares que explodem com milhões de flores na primavera. Empreendo uma tarefa transnacional sem hostilidade aos fatores étnicos e nacionais, uma tarefa preparatória para um futuro sistema político de natureza imperial, que Jean Parvulesco, em seu vocabulário muito específico, chamou de “Império Eurasiático do Fim”.
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